Breve evolução histórica
Foi já há mais de 20 anos que a União Europeia (UE) lançou um importante instrumento que se tornou uma referência na melhoria e qualidade do parque edificado na Europa, em concreto, a diretiva do desempenho energético dos edifícios (EPBD). Para Portugal, a 1º transposição desta diretiva em 2006 trouxe diversos impactos positivos, dos quais se destacam 3:
- A definição de uma metodologia de cálculo do desempenho dos edifícios, facto que levou a uma visão integrada da utilização da energia em diversos usos nos edifícios;
- O estabelecimento de requisitos mínimos de desempenho para edifícios novos e renovados, que conduziu a uma melhoria na qualidade construtiva ao nível das soluções técnicas e prevenção de patologias e foi igualmente uma oportunidade para a introdução, em Portugal, de outros requisitos como a incorporação de energias renováveis (coletores solares térmicos), a qualidade do ar interior ou como elemento para atestar o cumprimento de diversos requisitos na construção e renovação dos edifícios;
- A certificação energética dos edifícios, na qual a UE pretendeu dar resposta a dois pontos chave, nomeadamente: i) apoiar o consumidor garantindo que este passa a dispor de mais informação sobre um imóvel num momento de decisão, ii) informar o proprietário do edifício sobre o desempenho do edifício e que medidas este pode tomar para melhorar esse desempenho.
O Sistema de Certificação Energética dos Edifícios (SCE) teve início a 1 de julho de 2007, com aplicação faseada, primeiro a edifícios novos e posteriormente também edifícios existentes, com especial destaque para o 1 de janeiro de 2009, data a partir da qual passou a aplicar-se a imóveis vendidos ou arrendados. A gestão do sistema foi atribuída à ADENE – Agência para a Energia e a supervisão deste à Direção Geral de Energia e Geologia.
A aplicação do SCE no terreno depende, em grande medida, dos técnicos, materializada na figura de Perito Qualificado (PQ). Os PQ são arquitetos, engenheiros ou engenheiros técnicos, com experiência comprovada, sendo estes a face visível do sistema no contacto direto com os proprietários dos edifícios.
59% | membros da Ordem dos Engenheiros |
29% | membros da Ordem dos Engenheiros Técnicos |
12% | membros da Ordem dos Arquitetos |
Desde cedo, a implementação do SCE no terreno passou por uma ampla divulgação e interação com as entidades que eram impactadas por este, nomeadamente as responsáveis pelas operações urbanísticas (municípios), formalização de negócios (notários e das demais entidades com competência para esse efeito) e anúncio de imóveis com vista à sua comercialização ou arrendamento (mediação imobiliária).
Estas entidades têm contribuído decisivamente para a implementação do SCE.
Apesar de não ter sido assim em vários Estados-Membros da UE, Portugal implementou um modelo orientado à recolha e sistematização de dados no SCE. A base de dados centralizada do SCE tem sido até hoje uma das grandes mais valias do sistema, servindo vários propósitos como, a título de exemplo, de apoio a vários instrumentos financeiros e programas de incentivo à melhoria da eficiência energética do parque edificado.
A 2ª transposição da EPBD em 2013 trouxe novos desafios ao SCE, o qual foi refrescado com um novo layout ao nível do certificado energético a fim de favorecer a comunicação e compreensão. Desde os finais de 2013 e até ao final da década, existiu um claro alargamento do papel da certificação energética a vários domínios (que se detalham adiante) e em complemento ao papel base do certificado.
A 3ª transposição da EPBD em 2020 serviu para melhorar alguns aspetos da legislação em vigor até então. Como principal realce destaca-se a uniformização de um quadro legal vasto e já muito fragmentado, sendo agora mais óbvia a articulação do SCE com as restantes obrigações a que os edifícios estão sujeitos. Isto é importante na medida em que existem muitas matérias e obrigações que se alavancam em novas figuras de técnicos, para além dos PQ, e em novas áreas conexas como automação e controlo dos edifícios, eletromobilidade, inspeções a equipamentos, entre outras.
O contexto europeu e internacional tem mudado constantemente e isso tem levado a que o ritmo e janelas temporais de revisão legislativa sejam cada vez mais curtas. Nessa medida, e pese embora ainda estejamos envolvidos na operacionalização das mudanças ocorridas com a 3ª transposição da EPBD, está já em curso a discussão entre as várias instâncias europeias de uma 4ª transposição, previsivelmente a iniciar-se já em 2024 (ver secção “Desafios futuros”).
Contributos da Certificação Energética dos Edifícios
Fruto da contínua procura de tornar o SCE como um instrumento útil e de fomentar a relação institucional com vários agentes do mercado, foi possível ao longo dos últimos anos alargar os horizontes da certificação energética. Conforme destacado na imagem abaixo, identificam-se 11 medidas implementadas as quais podem ser tipificadas em 3 ações: “Apoio a medidas legislativas”, “Incentivo à renovação dos edifícios” e “Apoio a stakeholders”.
Ao longo dos últimos anos e em complemento ao papel individual de cada um dos certificados energéticos emitidos, destacam-se as seguintes medidas de apoio do SCE:
- Conhecimento do parque edificado – Fruto dos mais de 2,5 milhões de certificados energéticos, cada um contendo cerca de 250 variáveis, é possível ter um conhecimento detalhado do estado físico dos edifícios em Portugal, do seu desempenho e das necessidades energéticas e de reabilitação deste
- Apoio à monitorização de políticas – Por via da informação existente na base de dados do SCE tem sido possível apoiar o desenho e monitorização de várias políticas de melhoria do desempenho energético com destaque, entre outras, para a Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE) ou o report nacional ou europeu em vários domínios da energia
- Identificação de necessidades do parque edificado – As mais de 5 milhões de medidas de melhoria identificadas pelos PQ permitem um mapeamento das ineficiências dos edifícios em Portugal e da estimativa para a sua melhoria, a qual orça já em 12 mil milhões de euros de investimento segundo os dados disponíveis no SCE
- Previsão do impacto das alterações legislativas – A modelação de alterações no quadro legal tem sido suportada por cenários criados a partir de dados do SCE, como foi o caso, a título de exemplo, do estabelecimento de requisitos para a qualificação de edifícios como de necessidades quase nulas (nZEB)
- Proporcionar benefícios fiscais – No passado, e a nível nacional, os proprietários de edifícios com classes energéticas A ou A+ beneficiaram de reduções em sede de IRS. Ao nível local, vários Municípios dispõem de reduções de IMI para esses imóveis mais eficientes
- Apoios a incentivos financeiros – Quer diretamente através do certificado energético, do suporte técnico ou disponibilização de dados, tem sido possível apoiar vários instrumentos financeiros nos últimos anos destacando-se o Fundo de Eficiência Energética, o Casa Eficiente 2020, o IFRRU 2020, os PO Regionais e PO SEUR, o Fundo Ambiental entre outros relacionados com o atual Plano de Recuperação e Resiliência
- Impactar a valorização patrimonial – Vários estudos europeus, internacionais (e também nacionais) têm evidenciado uma perceção do consumidor face à classe energética de um imóvel. Por norma, evidencia-se uma disponibilidade para pagar um valor adicional por um imóvel de melhor desempenho face a outro de pior desempenho, bem como uma comercialização mais rápida dos primeiros face aos segundos
- Suportar acesso a “One-Stop-Shops” – São cada vez mais as One-Stop-Shops na Europa com vista a apoiar o cidadão no processo de renovação dos edifícios. Em Portugal, o Portal casA+ (https://portalcasamais.pt/) permite que cada consumidor possa aceder a uma área privada da sua casa. Ao adicionar o número do certificado energético, novas funcionalidades e informação adicional é disponibilizada a cada consumidor podendo este interagir com empresas e pedir cotações para implementar medidas de melhoria
- Apoio à investigação – Do ponto de vista académico o acesso a dados do SCE tem permitido à comunidade académica suportar diversas teses em diversos domínios relacionados com os edifícios
- Apoio ao setor imobiliário – Com especial destaque para as empresas de mediação imobiliária ou entidades anunciadoras, o acesso desmaterializado a dados do certificado energético garante a confiança e veracidade na informação a disponibilizar no âmbito de anúncios com vista à venda ou arrendamento de imóveis
- Apoio a autoridades nacionais e locais – No âmbito da produção de indicadores estatísticos ou inquéritos à população por parte do INE ou para apoio a municípios no âmbito da implementação de planos municipais ou monitorização do seu parque edificado
Desafios atuais
Apesar da certificação energética existir há 16 anos e do contributo da certificação antes referido, continuam ainda a subsistir vários desafios que se elencam:
- As metodologias cálculo para avaliação do desempenho energético – Sendo o certificado um elemento que pretende apoiar a comparação de imóveis é natural que os pressupostos usados para a avaliação do desempenho sejam únicos. Assim, garante-se que os resultados permitem uma comparação justa entre imóveis. Naturalmente, isso significa que cada certificado não traduz o consumo de energia real de cada imóvel (fruto da utilização dada pelo utilizador), mas sim um resultado que representa uma utilização em condições típicas de utilização para um número pré-determinado de ocupantes. Uma futura atualização do certificado energético conjugada com outros instrumentos, em via de desenvolvimento como é o caso do Passaporte de Renovação, poderão abrir a possibilidade de conjugar estas duas realidades.
- O certificado energético representa a menor unidade do edifício e não a totalidade das frações – O certificado energético está orientado para o utilizador de um edifício ou fração. Assim, medidas de melhoria que integrem várias frações ou zonas comuns de edifícios multifamiliares estarão distribuídas por cada certificado. Uma abordagem integrada nos edifícios multifamiliares poderá ser implementada com os Passaportes de Renovação, dando assim uma visão integrada ao condomínio.
- Suporte aos técnicos do SCE – Apesar da formação de base e competências dos PQ é importante prestar um apoio contínuo para a manutenção de um desempenho elevado por parte destes. Com a evolução do quadro legislativo e da multiplicidade de temas que cruzam com o SCE como, a título de exemplo e sem limitar, o financiamento, o licenciamento dos edifícios ou a evolução de ferramentas de cálculo, é importante o apoio contínuo da ADENE quer nos esclarecimentos, disponibilização de informação ou ações de capacitação e formação.
- A melhoria contínua da qualidade do SCE – Nos últimos anos a ADENE, em articulação com a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), esta última enquanto entidade supervisora do SCE, tem apostado na diversificação de ações que conduzem à melhoria da qualidade do SCE e do trabalho dos PQ. Esta mudança passa igualmente por uma perspetiva de maior apoio, em especial, na componente preventiva, a fim de garantir, tão cedo quanto possível, a prevenção de erros e falhas que resultem na diminuição da qualidade do SCE. A DGEG, por sua vez, tem apostado no reforço da supervisão do sistema e da avaliação do cumprimento das obrigações dos diversos atores no SCE. Ainda assim, este é um tema contínuo e que requer um acompanhamento a todo o tempo por parte do SCE.
- Suporte aos agentes do mercado – Apesar dos 16 anos de vigência do SCE continuam a subsistir dúvidas sobre a aplicação do quadro legal, em especial na articulação com as operações urbanísticas. Nessa medida, a ADENE tem realizado diversas ações dirigidas a vários stakeholders, providenciando documentação, sessões on-line ou linhas de apoio a estes.
Desafios futuros
À data da publicação deste artigo, a Comissão Europeia, o Conselho e o Parlamento Europeu encontram-se nos trílogos sendo de esperar que cheguem a uma nova versão final da EPBD, desejavelmente, antes do final de 2023. Apesar dessa incerteza, existem muitos elementos que levam a crer que a certificação energética terá um papel crescente nessa diretiva. Assim e em complemento ao atual papel da certificação energética, preveem-se várias novidades para o SCE, as quais se sintetizam em 12 desafios:
- Harmonização das classes energéticas a nível europeu, antevendo-se que todos os Estados-Membros implementem uma escala única de A a G
- Base para a definição dos futuros zero energy buidings (ZEB) antevendo-se que a estes corresponda uma classe energética A
- Métrica para determinar os worst performance buildings, os quais serão classificados como tendo uma classe E a G
- Papel crescente no apoio ao financiamento da renovação dos edifícios e na forma de melhorar os worst performance buildings
- Elementos para operacionalizar os minimum energy performance standards (MEPS) que constituirão uma “obrigação” mínima de desempenho energético (classe energética) numa determinada data ou momento e em função do edifício
- Forte interação com os building renovation passports e com as medidas de melhoria que este novo instrumento trará para apoiar a renovação dos edifícios
- Nova métrica para acompanhar a monitorização dos futuros national buildings renovation plans com vista a que os edifícios se tornem ZEB, classe A, até 2050
- Base para a implementação do regulamento da taxonomia, já em vigor, e como forma de medir o contributo dos edifícios para a mitigação das alterações climáticas e o quão sustentável é uma determinada atividade imobiliária
- Integração nas one-stop-shops como elementos de apoio à ação por parte do consumidor
- Instrumento para disponibilização do indicador life-cycle global warming potential (GWP) que identifica o contributo do edifício para o Potencial de Aquecimento Global ao longo do seu ciclo de vida (cradle to grave)
- Instrumento para disponibilização de indicadores adicionais como o Smart Readiness Indicator (SRi) ou eletromobilidade
- Implementação de uma base de dados sobre os certificados energéticos. Apesar de só agora passar a ser obrigatória vários Estados-Membros, incluindo Portugal, já implementaram essa base de dados a qual suporta muitas das ações como as referidas acima.
Conclusões
A implementação e condução do SCE tem sido um processo desafiante para todos os que participam nele. A perceção generalizada é que se trata de um instrumento que está já bem presente ao nível das operações urbanísticas e na venda e arrendamento sendo que o consumidor, em geral, está ciente da existência do certificado energético e das suas funções base.
Ainda assim, e tendo em conta os desafios antes referidos, importa manter um contínuo suporte à implementação e promoção da certificação energética, para que esta seja ainda mais compreendida e vista cada vez menos como uma burocracia dentro de um determinado processo (licenciamento, venda, financiamento, etc..) e uma mais-valia.
Os desafios futuros antes referidos serão igualmente uma oportunidade para Portugal “refrescar” a certificação energética, procurando evoluir na imagem do certificado energético, no desenvolvimento de várias versões que servem vários propósitos distintos e de apoiar o processo de transformação dos edifícios em Portugal, tornando-os confortáveis, eficientes, saudáveis e descarbonizados.